A CIÊNCIA POLÍTICA E O PENSAMENTO POLÍTICO DE WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS


LA CIENCIA POLÍTICA Y EL PENSAMIENTO POLÍTICO DE WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS


THE POLITICAL SCIENCE AND THE POLITICAL THOUGHT OF WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS



Marcelo Sevaybricker MOREIRA1

e-mail: msevay@gmail.com



Como referenciar este artigo:


MOREIRA, M. S. A ciência política e o pensamento político de Wanderley Guilherme dos Santos. Teoria & Pesquisa: Revista de Ciência Política, São Carlos, v. 33, n. 00, e024011, 2024. e-ISSN: 2236-0107. DOI: https://doi.org/10.14244/tp.v33i00.1097


| Submetido em: 06/02/2024

| Revisões requeridas em: 16/05/2024

| Aprovado em: 12/09/2024

| Publicado em: 11/12/2024




Editora:

Profa. Dra. Simone Diniz

Editor Adjunto Executivo:

Prof. Dr. José Anderson Santos Cruz

1 Professor efetivo da Universidade Federal de Lavras (DCH-UFLA). Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, 2004), Mestrado em Ciência Política (UFMG, 2009), Doutorado em Ciência Política (UFMG, 2013) e Pós-Doutorado em Ciências Sociais (pela Universidade de Buenos Aires [UBA], 2022). Investiga temas da teoria política e do pensamento político brasileiro).

Teoria & Pesquisa: Revista de Ciência Política, São Carlos, v. 33, n. 00, e024011, 2024. e-ISSN: 2236-0107. DOI: https://doi.org/10.14244/tp.v33i00.1097 1

A ciência política e o pensamento político de Wanderley Guilherme dos Santos


RESUMO: Muitos estudos sobre a institucionalização da moderna Ciência Política brasileira, ocorrida a partir do final dos anos de 1960, tem enfatizado que a primeira geração de cientistas políticos, após terem completado sua formação acadêmica nas universidades estadunidenses, teriam ignorado e buscado romper o pensamento político nacional do passado, chamado de a “Velha Ciência Política”. Este artigo busca problematizar e complexificar esse diagnóstico a partir da análise da trajetória intelectual e da obra de um dos “pais-fundadores” da nova Ciência Política brasileira, Wanderley Guilherme dos Santos, um dos principais expoentes desta geração e fundador de importantes instituições, teorias e conceitos nessa área de conhecimento. Neste sentido, este artigo defende que, embora certas rupturas sejam observáveis, é igualmente fundamental considerar muitas continuidades entre a “velha” e a “nova” Ciência Política brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Ciência política brasileira. Wanderley Guilherme dos Santos. ISEB. IUPERJ. Pensamento político brasileiro.


RESUMEN: Muchos estudios sobre la institucionalización de la moderna Ciência Política brasileña, ocurrida a partir del fin de los años de 1960, tiene enfatizado que la primera generación de cientistas políticos, después de terem completado tu formación acadêmica en las universidades estadounidenses, tenían ignorado y buscado romper con el pensamiento político brasileño del pasado, llamado de la “vieja Ciência Política”. Este artículo busca problematizar y complexificar ese diagnóstico a partir del análisis de la trayectoria y la obra de uno de los “padres-fundadores”de la “nueva Ciência Política brasileña, Wanderley Guilherme dos Santos, uno de los principales exponentes de esta generación y fundador de importantes instituições, teorías y conceptos en esa área del conocimiento. En este sentido, este artículo defiende que aunque rupturas sean observadas, es igualmente fundamental considerar muchas continuidades entre la “vieja” y la “nueva” Ciência Política brasileña.

PALABRAS CLAVE: Ciência Política brasileña. Wanderley Guilherme dos Santos. ISEB. IUPERJ. Pensamiento político brasileño.


ABSTRACT: Many studies about the institutionalization of modern Brazilian Political Science, which occurred in the late 1960s, emphasized the first generation of political sciences, after having completed their academic training in American universities, ignored and sought to disrupt national political thought of the past, called “old Political Science”. This paper seeks to problematize and complicate this diagnosis based on the analysis of intellectual trajectory and the work of one of the “founding fathers” of the “new” Brazilian Political Science, Wanderley Guilherme dos Santos, one of the main exponents of this first generation and founder of important institutions, theories, and concepts in this field of knowledge. In this sense, this article argues that although certain ruptures are observable, it is equally fundamental to consider many continuities between the “old” and the “new” Brazilian Political Science.

KEYWORDS: Brazilian Political Science. Wanderley Guilherme dos Santos. ISEB. IUPERJ. Brazilian Political Thought.


Teoria & Pesquisa: Revista de Ciência Política, São Carlos, v. 33, n. 00, e024011, 2024. e-ISSN: 2236-0107. DOI: https://doi.org/10.14244/tp.v33i00.1097 2

Marcelo Sevaybricker MOREIRA


Introdução


Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019) pode ser considerado uma espécie de “pai-fundador” da nova Ciência Política entre nós (Moreira, 2014; Lynch, 2017). Apesar de justa, essa designação oculta aspectos importantes sobre o seu pensamento e sobre a sua trajetória. De fato, esse autor (daqui em diante identificado simplesmente como WGS) contribuiu na criação do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (o IUPERJ), em 1965, um espaço pioneiro e fundamental para as Ciências Sociais brasileiras; da Dados, no ano seguinte, um dos periódicos nacionais com maior impacto nesta área do conhecimento; e da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), em 1977, presidida por ele entre 1983-1984; dentre outras iniciativas institucionais (Cardoso, 2015). Ele foi responsável pela formação de diversas gerações de cientistas políticos e liderou, junto a outros intelectuais, um projeto de constituição de uma tradição especializada nesta área do conhecimento no Rio de Janeiro. É também autor de mais de trinta livros, inúmeros artigos e capítulos sobre liberalismo, autoritarismo e democracia, dentre outros temas, avaliados, em geral, a partir de uma perspectiva comparada e com especial atenção à história nacional. Alguns desses escritos tiveram uma repercussão significativa entre os estudiosos, especialmente nas áreas de Eleições e Representação Política, Instituições Políticas, Teoria Política e constituem um marco de criação do próprio Pensamento Político Brasileiro (Lynch, 2013). Por tudo isso, o conjunto da obra de WGS figura como uma contribuição fundamental ao campo da Ciência Política. Conceitos como “autoritarismo instrumental”, “cidadania regulada”, “crise de paralisia decisória”, além de indicadores empíricos, como o de “competitividade eleitoral”, criados por ele ao longo de mais de meio século de labor intelectual, foram incorporados ao jargão da nova Ciência Política e têm sido utilizados por diferentes estudiosos (Moreira e Santos, 2020). Sua abordagem atenta às sutilezas teóricas e capaz de avaliar empiricamente fenômenos políticos complexos permanece como uma importante referência para esse campo do conhecimento.

Pode-se dizer que a velha Ciência Política corresponde à tradição de pensamento político que antecedeu à institucionalização dos Programas de Pós-Graduação em Ciência Política no Brasil, ocorrida no final dos anos de 1960 (Lynch, 2016a). Tal categoria engloba obviamente autores muito distintos. Mas dentro dessa diversidade, cumpre notar que a velha Ciência Política não era pensada propriamente como um saber científico separado das outras ciências, diferentemente da nova Ciência Política, que reivindica uma abordagem particular frente a outros saberes que estudam os fenômenos sociais. Nesse sentido, muitos autores

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comentam que a nova Ciência Política brasileira, ao reivindicar um olhar sui generis sobre a política e ao adotar métodos e teorias oriundas, em particular, das universidades estadunidenses (aos quais muitos politólogos brasileiros tiveram contato por meio de suas pós-graduações), surgiu negando, em grande medida, as tradições intelectuais de nosso passado. A grosso modo, a Ciência Política estadunidense tinha como meta a elaboração de um conhecimento objetivo, politicamente neutro e lastreado em dados empíricos, tendo como referência o que supostamente era realizado no âmbito das Ciências Naturais. Ao tomar como referência essa matriz científica, a nova Ciência Política brasileira teria rompido com a velha Ciência Política brasileira, tomada à época como diletante, já que feita por intelectuais com outra formação acadêmica, especialmente o Direito, supostamente pouco rigorosa e engajada politicamente.

A diferenciação entre a velha e a nova Ciência Política brasileira requer, todavia, esclarecimentos. Em primeiro lugar, trata-se de um modo um tanto quanto genérico de tratar do processo de formação desse saber, o que gera, em algum grau, uma generalização sobre processos históricos complexos e, eventualmente, distintos de institucionalização científica. Nesse sentido, por estar centrado na obra e na trajetória de WGS, este trabalho corre o risco de generalizar para a Ciência Política nacional, traços, talvez, mais típicos do contexto carioca. Mais importante do que isso, essa diferenciação, frequentemente, está baseada em uma avaliação pejorativa da velha Ciência Política, avaliação essa contestada pelo presente trabalho. Se parece, de fato, haver traços distintos da nova Ciência Política em relação ao pensamento político do passado, isso não significa, necessariamente, que a primeira goze de qualquer superioridade em relação ao segundo. Se usamos, portanto, esses termos, é meramente para tentar organizar didaticamente a história desse saber no país, mas sem deixar de demonstrar como ela é mais complexa do que uma concepção baseada meramente na oposição entre duas formas de se fazer Ciência Política pode captar.

Nesse sentido, cumpre esclarecer: WGS já era um intelectual antes, por assim dizer, do nascimento da nova Ciência Política no país. Ele fez parte da última geração do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), onde publicou seus primeiros trabalhos. Isto é, aquele que é associado à inserção dessa nova forma de conhecimento por aqui, era, ele mesmo, participante do grupo de pensadores que, supostamente, essa nova ciência pretendia superar. Há, destarte, na obra de WGS um elo entre a velha e a nova Ciência Política; entre ISEB e IUPERJ. E a sua trajetória não é um caso isolado. Outros isebianos, tal como Cândido Mendes e Hélio Jaguaribe, se vincularam ao IUPERJ, no contexto que se seguiu ao golpe de 1964.


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O IUPERJ foi fundado com o desiderato claro de retomar as atividades do extinto ISEB (Lynch, 2016b) e, a partir de 1969, passou a oferecer o segundo programa de Pós-graduação em Ciência Política do país, nos moldes da Ciência Política estadunidense. Menos do que meia década, portanto, separa os estudos feitos no ISEB daqueles realizados no âmbito do IUPERJ. A despeito dessa contiguidade temporal e espacial, alguns estudiosos (Lamounier, 1982; Reis, 1993; Pécaut, 1990; Forjaz, 1997) têm salientado, como já dito, uma ruptura entre o que se convencionou chamar de velha Ciência Política (feita no ISEB, por exemplo) e a nova Ciência Política. Considerando isso, pergunta-se: que conclusões podemos extrair ao comparar o pensamento político de WGS do ISEB, por assim dizer, do WGS do IUPERJ? Em que medida a narrativa, acima descrita, da ruptura entre a velha e a nova Ciência Política, se sustenta em relação à obra desse autor?

Este trabalho procura apresentar algumas respostas a essas indagações e, ao fazê-lo, adota-se aqui uma tese de interpretação segundo a qual há dois elementos fundamentais no pensamento de WGS que evidenciam a permanência de certos aspectos da velha Ciência Política nesse pensador do IUPERJ, quais sejam: o compromisso em atuar como intelectual público e a intenção de construção de uma interpretação do Brasil que não se limita a uma única área de especialização da nova Ciência Política. Nas duas primeiras seções deste artigo discute- se a velha, a nova Ciência Política e a transição entre elas. Na terceira, apresentamos sinteticamente a obra e a trajetória de WGS, relacionando-a às próprias transformações da Ciência Política brasileira.


A velha Ciência Política e o ISEB


A origem do ISEB está relacionada a duas iniciativas institucionais que o antecederam, o grupo de Itatiaia e o IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política). A primeira se iniciou em agosto de 1952, quando alguns intelectuais cariocas e paulistas começaram a se reunir mensalmente no Parque Nacional de Itatiaia, com vistas a tentar pensar questões filosóficas mais universais, mas também elaborar um projeto de desenvolvimento para o Brasil. O grupo congregava intelectuais de tendências ideológicas diversas, alguns católicos e ex-integralistas, mas também pensadores mais à esquerda; já compunham esse grupo inicial, alguns dos que seriam depois chamados “isebianos históricos” (Toledo, 1978), tais como Hélio Jaguaribe, Candido Mendes, Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier e Guerreiro Ramos. De um modo geral, os interessados nas discussões mais filosóficas e, sobretudo, os paulistas (com


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exceção de Corbisier) acabaram se afastando do grupo de Itatiaia (Bariani, 2005). Dominado pelos cariocas e consolidado com o propósito de elaborar um pensamento voltado para os problemas brasileiros, a iniciativa avançou institucionalmente: em 1953, o grupo de Itatiaia foi substituído formalmente pelo IBESP.

O IBESP foi concebido para formar uma intelligentsia que pudesse apoiar o projeto de desenvolvimento a ser liderado pelo Estado brasileiro, mas, tal como o grupo de Itatiaia, enfrentava ainda alguns problemas operacionais: seus encontros eram bastante irregulares e suas atividades eram financiadas pelos seus próprios membros (Lovatto, 2021). Apesar das dificuldades, o instituto logrou lançar cinco números dos Cadernos do Nosso Tempo, revista que relatava as discussões feitas internamente, ao mesmo tempo, em que procurava difundir novas ideias sobre o país. Para Bariani (2005, p. 250), esses escritos não tinham um caráter acadêmico, sendo muito mais “textos de combate”, em que se procurava “influir decisivamente na realidade brasileira”.

Na esteira da modernização brasileira e como resultado da crise política que se instala com o suicídio de Vargas (Lovatto, 2021), o presidente Café Filho transformou o IBESP em ISEB, agora organizado em departamentos e dirigidos, em sua maioria, pelos “isebianos históricos”. Com uma nova estrutura organizacional, o ISEB é comandado por Corbisier, mas ainda é liderado por Jaguaribe, verdadeiro mentor intelectual das duas iniciativas institucionais que o antecederam.

Nos seus primeiros anos, permanecia o desiderato de fundamentar cientificamente um projeto de desenvolvimento nacional via industrialização. Segundo Toledo (1978) e Pécaut (1990), a ideologia nacional-desenvolvimentista, formulada pela intelligentsia isebiana, pressupunha a suplantação dos conflitos classistas, com o objetivo de que surgisse um corpo social unificado em torno do progresso. Somente com uma ideologia autêntica seria possível impulsionar o processo de superação da estrutura semicolonial brasileira. Contra os setores tradicionais e retrógrados da sociedade brasileira, os setores mais modernos, dinâmicos e progressistas seriam orientados por essa intelligentsia.

O ISEB se distanciava das especulações mais filosóficas do IBESP, pois, passou a direcionar suas atividades cada vez mais na elaboração de soluções concretas para os principais problemas da nação, alinhadas, em grande medida, com as políticas desenvolvimentistas, como expresso no Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Dizer, contudo, que o nacional- desenvolvimentismo se firmou como marca ideológica desse primeiro ISEB, não deve nos levar a pensar em um pensamento homogêneo, nem que não fizesse críticas ao governo de JK.

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Esse ecletismo interno ao ISEB produz, em 1958, a conhecida crise desencadeada pelas críticas de Guerreiro Ramos ao livro de Jaguaribe, O nacionalismo na atualidade brasileira. O primeiro caracterizou as teses do segundo como “entreguistas”, já que esse defendia a controversa política de ingresso de capital estrangeiro, concebido como fator indispensável para o desenvolvimento brasileiro. Abreu (s. d.) nota que, estabelecido o impasse a respeito dentro do ISEB, prevaleceu a posição de Jaguaribe, contra a de Ramos, que pediu então a sua demissão. Ela pondera, contudo, que essa crise tinha como pano de fundo uma divergência mais ampla: de um lado, Jaguaribe defendia uma posição mais técnica por parte de seus membros, ao passo que um outro grupo, do qual Ramos, Corbisier e Pinto faziam parte, que compreendia o ISEB mais engajado politicamente. Ou seja, o instituto vivia um dilema de concentrar esforços na produção de conhecimento científico, ou na difusão de ideias que pudesse não apenas racionalizar o desenvolvimento pelo qual o país vinha passando (objetivo que parece ter prevalecido nos seus primeiros anos), mas também promover ativamente a revolução brasileira (objetivo que marca o instituto nos seus últimos anos).

Em 1959, JK realizou um conjunto de mudanças no ISEB, ao que parece articuladas com seu diretor, Corbisier, e que desagradaram a Jaguaribe, gerando também a sua saída. Em 1961, João Goulart assume o poder com a proposta de realizar e aprofundar as reformas estruturais do país. Tal período coincide, grosso modo, com o que alguns estudiosos chamam de terceira fase do ISEB, na qual os seus componentes preparam projetos de lei para a Frente Parlamentar Nacionalista, organizam cursos para sindicalistas e publicam textos voltados para o grande público. Trata-se do período de máxima radicalização à esquerda do ISEB, atuando próximo ao Partido Comunista do Brasil, da Liga Camponesa e da União Nacional dos Estudantes.

Paradoxalmente, um certo alinhamento do ISEB com os governos JK e Jango, na defesa das reformas estruturais, não garantiu para ele melhores condições materiais de funcionamento. Por exemplo, a partir de 1961, a rubrica ISEB é simplesmente eliminada do Orçamento da União, de modo que ele iniciou o ano letivo sem qualquer recurso. Como pondera Lovatto (2021), o ISEB era já alvo à época de uma campanha anticomunista, patrocinada por setores reacionários como Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Alvo da propaganda da direita, o ISEB organizava, junto à editora Civilização Brasileira, os Cadernos do Povo Brasileiro. Vendidos a baixo custo, esses fascículos visavam apresentar a um público leigo as questões mais candentes do momento, em uma linguagem simples e provocativa, tais como: “Quem é o povo no Brasil?”, “Por que os

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ricos não fazem greve?” e “Quem dará o golpe no Brasil?”, escritos respectivamente por Werneck Sodré, Vieira Pinto e WGS.

Criado originalmente, portanto, como um espaço para que os intelectuais pudessem influenciar e/ou compor a própria elite dirigente do país, o ISEB passou a ser pensado cada vez mais como um local de mobilização popular, adotando, então, uma visão, por assim, dizer mais distante do Estado e próxima do povo, o que não significou, necessariamente, uma visão não elitista do papel do intelectual (que continuava a ser concebido como uma espécie de intérprete das consciências menos esclarecidas). Lovatto (2021) pondera que essa tendência evidencia-se, inclusive, pelo teor e propósito de suas publicações: de textos voltados para a burocracia estatal e para a classe média letrada, como os Cadernos do Nosso Tempo, para os panfletos políticos dos Cadernos do Povo Brasileiro.

É interessante refletir um pouco mais sobre a relação entre intelectualidade e política, pois o ISEB foi à época bastante criticado por sua natureza mais politizada. Tal crítica, segundo Bernardo Sorj (2001), está principalmente ligada à escola paulista de Sociologia, criada na década de 30 em torno da USP sob o auspício de Florestan Fernandes. Os intelectuais cariocas são identificados como um grupo fortemente comprometido com a política real, de inspiração nacionalista, de modo que as ideias seriam apenas um meio para fazer política; ao passo que os paulistas, segundo essa narrativa, respeitariam muito mais os cânones do trabalho científico. Como vimos, o papel do intelectual e sua relação com a política não eram pontos pacíficos entre os isebianos. Além disso, o maior engajamento dos intelectuais isebianos na vida pública não significa, necessariamente, uma produção científica de menor valor, além de ser bastante questionável a neutralidade autoatribuída por alguns sociólogos paulistas.

Sobre esse tema, Lovatto pondera que o fechamento do ISEB significou um duro golpe na cultura brasileira, na medida em que a figura do intelectual público foi substituída pela figura do intelectual que tem seu trabalho pautado por critérios mais acadêmicos. Estamos de acordo com a autora de que a ideia do intelectual público seja um dos legados mais importante da experiência isebiana. Contudo, sob certo sentido, ela parece reeditar, sob nova chave, a narrativa de pura ruptura entre a velha e a nova Ciência Política: a primeira seria marcada pela sua vocação pública, ao passo que a segunda, caracterizada por certo insulamento do intelectual nas universidades, mais preocupados com seus currículos do que com as “lutas de seu país” (Lovatto, 2021, p. 12).

É importante ponderar que depois de ter sido tão duramente criticado nas décadas de 1960 e 1970, muitos desses críticos reconheceram depois a importância histórica do ISEB.

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Lamounier (1982) afirma que do mesmo modo que o ISEB se inspirou claramente na geração anterior de intelectuais, das décadas de 1920 e 1930, as gerações posteriores de cientistas sociais tiveram forçosamente o ISEB como referência. Toledo (1978), autor de um dos livros mais duros de crítica ao ISEB, atenuou o tom severo com o qual julgou, dizendo que “o Instituto Superior de Estudos Brasileiros se constituiu numa experiência cultural inovadora na história política brasileira” e de que ele “melhor simbolizou e concretizou (e a prática) do engajamento intelectual na vida pública e social de seu país” (Toledo, 2005, p. 7). Ele relembra o depoimento de dois intelectuais originalmente críticos ao ISEB, Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz, que salientaram posteriormente o fato desse instituto ter tido maior influência sobre a vida social brasileira do que eles próprios teriam conseguido. Forjaz (1997: s./p) sintetiza o ponto, ao dizer que “o ISEB é uma das referências intelectuais da qual partem os [cientistas políticos] mineiros e os cariocas”.


A nova Ciência Política e o IUPERJ


O Instituto [IUPERJ] funcionava nas dependências do antigo Convento do Carmo, na Praça Quinze de Novembro 101, no centro do Rio de Janeiro, como as demais instalações da Sociedade Brasileira de Instrução (SBI). Seu fundador, Cândido Mendes de Almeida, pretendia alcançar dois objetivos. O primeiro era que o novo centro ocupasse o vazio deixado na cena intelectual do país desde a extinção do antigo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) por ocasião do golpe militar de 1964. (...) Se o primeiro objetivo de Mendes se vinculava, assim, à tradição da “velha ciência política brasileira”, o segundo deles tinha o propósito inverso. Por meio de dotações orçamentárias generosas e bolsas de estudo de mestrado e doutorado nos Estados Unidos, a Fundação Ford tencionava apoiar no Brasil a criação de institutos comprometidos com a produção de uma ciência política empiricamente orientada e já tinha celebrado convênio com a Universidade Federal de Minas Gerais (DCP-UFMG). Assim, a fim de tornar o IUPERJ um parceiro atraente para um convênio daquele tipo, era preciso que o novo centro também estivesse comprometido com uma ciência social empiricamente orientada (Reis, 1993) (Lynch, 2016b: 109).


Há, pelo menos, quatro aspectos importantes na citação anterior a serem avaliados: a relação dos pesquisadores do IUPERJ com o antigo ISEB e com a velha Ciência Política do país; a relação deles com a nova matriz epistêmica com a qual tiveram contato nos Estados Unidos; a institucionalização da nova Ciência Política brasileira e sua relação com o regime militar; e o fomento de instituições estadunidenses à nova Ciência Política brasileira.

De acordo com Feres Jr. (2000), o uso da expressão “Ciência Política” tornou-se comum nos Estados Unidos a partir do debate entre federalistas e antifederalistas no século XVIII.

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Como disciplina acadêmica, porém, a Ciência Política inicia-se bem depois, somente em 1857, com a nomeação do primeiro catedrático na área. Em 1880 é criado o primeiro Departamento de Ciência Política e, em 1903, a Associação Americana de Ciência Política (APSA). Mas um grande impulso na história dessa área do conhecimento nos Estados Unidos se deu, contudo, mais tarde, entre os anos de 1940 e 50, com a revolução behaviorista. De acordo com Lessa (2010), ocorreu nessa época um processo de uma refundação de todo ensino superior estadunidense, a fim de superar um suposto legado ideológico, que consistiu na afirmação de quatro princípios básicos: 1) devoção às Hard Science, tomadas como modelo de conhecimento a ser produzido; 2) busca pela objetividade do conhecimento; 3) confiança na análise formal e;

4) aversão às ideologias e anseio de “pureza disciplinar” (Lessa, 2010, p. 34-35).

Essa virada epistêmica fez com que os saberes perdessem uma disposição de uma maior interlocução com a sociedade, caracterizando-se, daí em diante, por valorizar mais os marcadores internos de qualidade, como expressos pelo crescente profissionalismo em cada campo (através do treinamento sistemático dos estudantes em disciplinas específicas) e pela autonomia acadêmica (e não segundo uma cultura humanista e transdisciplinar, como ocorria anteriormente). Segundo esse novo ideal de ciência, os intelectuais não deveriam se comprometer com quaisquer fins políticos, cabendo a eles tão-somente a análise objetiva dos fenômenos empiricamente mensuráveis, identificando padrões e formulando modelos dedutivos que pudessem explicar os fenômenos. A reflexão teórica encontrava pouco espaço nesse novo modelo de ciência, sendo compreendida como algo anacrônico ou ideologicamente comprometido.

Curiosamente, embora assumissem uma postura de imparcialidade, boa parte dos cientistas políticos estadunidenses defendiam abertamente a superioridade do regime democrático, em especial tal como vivenciado naquele país. Havia, pois, a intrigante combinação de um discurso de neutralidade quanto a valores e de compromisso normativo com os ideais liberal-democráticos. Lessa (2011, p. 42) esclarece que o behaviorismo “não reinou de forma exclusiva e absoluta” nos Estados Unidos. Já em meados de 1960 (período de formação da nova Ciência Política brasileira), identificava-se uma virada pós-behaviorista, constituída principalmente em torno da crítica à ideia de neutralidade axiológica. Com o passar do tempo, a Ciência Política estadunidense tornar-se-ia mais plural, ainda que uma cultura neopositivista fosse forte em seu meio.

Ora, como ocorreu esse processo de incorporação da Ciência Política estadunidense pela intelectualidade brasileira? Trata-se de compreender que ele envolve a constituição de uma

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“comunidade epistêmica” dotada de “identidade, recursos próprios, hábitos institucionais e linguagens próprias e compartilhadas e formas de expressão e presenças públicas” (Lessa, 2011,

p. 29). A autonomização do político andou pari-passu à autonomização do próprio campo disciplinar da Ciência Política brasileira. Se a tradição da velha Ciência Política sempre esteve atenta aos fenômenos políticos, ela não reclamou uma autonomia da política como dimensão do real, como viria acontecer com muitos dos cientistas políticos a partir de fins da década de 1960, que contestavam os sociologismos e economicismos comuns à análise. Forjaz (1997) reitera que, nesse contexto, a dimensão da política ganha mais notoriedade, não apenas como prática, mas como campo de conhecimento, o que não deixou de ser um produto das urgências criadas pelo regime autoritário e da luta pela redemocratização. Contra o padrão de trabalho intelectual “calcado frequentemente em longos ensaios histórico-conceituais e carentes de embasamento empírico e formalizações lógico-matemáticos” (Forjaz, 1997, s/p.), a nova Ciência Política enfatiza o potencial explicativo das instituições políticas, tomadas como variáveis independentes ou intervenientes, entendendo que a política não se subsume à estrutura socioeconômica (mas, ao contrário, muitas vezes a explica). Nesse sentido, a questão do desenvolvimento do país (central no ISEB) vai sendo aos poucos substituída pelas pesquisas da nova Ciência Política que avaliam a natureza do regime militar brasileiro, as estratégias de redemocratização e o funcionamento dos partidos e das eleições no país que, mesmo nas condições do forçado bipartidarismo brasileiro, impactavam sobre a dinâmica política nacional. Sob esse aspecto, cumpre notar igualmente o papel fundamental da moderna Ciência

Política brasileira quando houve uma intensa mobilização da sociedade civil em torno da bandeira da “Anistia” e das “Diretas Já”. Essa forma de conhecimento foi um espaço privilegiado, na medida em que estava legitimado pelo status de saber científico e validado por instituições de renome nacional, não apenas de análise do sistema político, mas também da defesa da democracia, contra o regime ditatorial da época.

É preciso lembrar não apenas que os primeiros programas de pós-graduação em Ciência Política foram criados em meados dos anos de 1960-70, como a institucionalização das Ciências Sociais, pelo menos no Sudeste brasileiro, foi muito impactada pela Reforma Universitária, realizada em 1968. Pécaut (1990), avalia que, ao contrário do que ocorreu em outros países latino-americanos, a relação entre os militares e os intelectuais brasileiros foi, no mínimo, ambígua: se por um lado o governo indignava-se com o posicionamento político de vários intelectuais e centros de pesquisa, perseguiu e censurou muitos deles, por outro lado, investia maciçamente na educação superior.

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Cumpre considerar também o controverso apoio de instituições de fomento estadunidenses à nova Ciência Política brasileira. Na avaliação de Reis (1993), o apoio dado pela Fundação Ford, por exemplo, foi decisivo na autonomização da Ciência Política em relação às demais ciências sociais através da constituição do primeiro quadro de professores do IUPERJ, “treinados em um pequeno número de universidades americanas de primeira linha”, formando um grupo de cientistas políticos altamente profissionalizados. Em especial no que tange ao treinamento metodológico, procurou-se fomentar a formação complementar de pesquisadores brasileiros em universidades estadunidenses e que, em seu retorno ao Brasil, se dividiram entre as iniciativas institucionais do DCP-UFMG e do IUPERJ, principalmente, ou que participaram de ambas. Àquela época, o politólogo Robert Packenham afirmava que faltava, em geral, à Ciência Política brasileira a prática da pesquisa de campo, como se praticava em seu país (Packenham apud Lynch, 2016a, p. 94). A posição de Packenham não era minoritária, pondera Reis (1993): para muitos intelectuais do país se fazia necessário consolidar um novo ethos de pesquisa, segundo o qual a pesquisa metódica e sistemática, de forte viés empirista, tornava-se rotina para o cientista social brasileiro, rompendo, assim, com nossa tradição “ensaística”. Lynch (2016b) comenta que os pesquisadores do IUPERJ, em meados dos anos 60, mostravam-se bastante insatisfeitos com os modelos teóricos e com os métodos utilizados pelos seus predecessores isebianos.

É possível compreender esse complexo processo de incorporação da matriz estadunidense de Ciência Política como expressão de certa colonização cultural (Feres Jr., 2000) e, nesse diapasão, o apoio da Fundação Ford como parte de uma política externa de dominação estadunidense no contexto da Guerra Fria. Miceli (1993) pondera, ao contrário, que a atuação desta Fundação não pode ser reduzida a esse clichê, dado que sua atuação frequentemente entrou em conflito com as diretrizes da política externa estadunidense. Há, assim, um certo exagero em assumir o parti pris de que a nova Ciência Política brasileira imitou acriticamente a produção intelectual estadunidense, pois mesmo que houvesse um empenho deliberado de sua parte em alcançar isso (fato também objeto de controvérsia), caberia ainda verificar como nossos intelectuais reagiram a essa influência. Feita a ressalva, cumpre, no entanto, entender em que medida a incorporação da matriz estadunidense teve impacto sobre a formação de uma nova Ciência Política no Brasil.

Desde já, é possível esclarecer que há pontos de maior convergência, mas também pontos de divergência entre ambas e, como veremos, a Ciência Política brasileira acabou sendo mais plural do que a sua referência original. Primeiramente, tal como nos Estados Unidos, a

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nova Ciência Política brasileira possui, em geral, um menor alcance analítico do que as grandes interpretações produzidas pelos intelectuais da velha cepa.

[Os novos cientistas políticos] estavam mais preocupados com a definição de seu lugar em uma sociedade na qual o conhecimento político ainda era predominantemente tarefa de bacharéis e jornalistas, ou de colegas de academia cujo trabalho julgavam pouco rigoroso. Viam-se como uma intelectualidade de novo tipo: especialistas cuja função primária não era a de produzir interpretações sobre a realidade global, mas conhecimento político rigorosamente científico, assim considerado em virtude do domínio de teorias e técnicas de pesquisa adquiridas ao longo de uma formação técnica. Seria nessa qualidade que eles poderiam um dia virem a exercer funções de intelectualidade pública (como de fato viria a acontecer com alguns deles quando começou a se desenhar a abertura do regime militar). Os novos cientistas ou sociólogos políticos procuraram, portanto, distinguir seu trabalho pela atualidade de seu rigor teórico-metodológico (Lynch, 2016b, p. 111-112).


A crescente especialização da nova Ciência Política brasileira, delimitando subáreas de pesquisa, já evidencia que não se espera das novas gerações a elaboração de grandes ensaios de interpretação do país; antes, a realização de pesquisas rigorosas sob fenômenos mais limitados temporal e espacialmente. No entanto, existem alguns intelectuais que mantiveram essa perspectiva de produção de interpretações da realidade global, ao mesmo tempo, em que incorporaram o padrão de trabalho empírico e rigoroso da nova Ciência Política, como parece ser o caso de WGS, dentre outros de sua geração. Isso se deve porque mesmo estando sob a influência da cultura da Ciência Política estadunidense e incorporando várias de suas características – “a forte preocupação metodológica, com ênfase quantitativa, e um claro movimento de [...] autonomização da política, com relação a outros domínios cognitivos” (Lessa, 2010, p. 39), muitos intelectuais brasileiros se mostraram críticos a alguns de seus aspectos. Um deles diz respeito à alegada abordagem neutra da política.

No Brasil, “incorporava-se certo ethos cientificista, mas ao mesmo tempo praticava-se a crítica de uma política apolítica’” (Lessa, 2011, p. 46). Não se replicou aqui o discurso de separação entre o cientista e o militante. Boa parte de nossos politólogos participaram, assim, ativamente dos debates e movimentos públicos em prol da redemocratização, por exemplo, dando continuidade à tradição do intelectual público, como já mencionado. É possível constatar igualmente que no Brasil não ocorreu uma marginalização tão intensa da teoria política, como nos Estados Unidos. Sobre isso, Lessa salienta a postura de dois expoentes da nova Ciência Política no Brasil, Fábio Wanderley Reis e WGS, que concederam significativa atenção aos temas da filosofia política contemporânea.


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Em síntese, se não faz muito sentido pensar a formação da nova Ciência Política brasileira em termos de colonização cultural, mais razoável nos parece a avaliação de Lessa (2010, p. 32) de que a “socialização de uma importante geração de cientistas sociais [...] nos temas e nos padrões disciplinares da Ciência Política norte-americana” é um fator absolutamente relevante na compreensão da formação da agenda de estudos da nova Ciência Política brasileira, apesar de isso não resultar forçosamente em “clonagem do modelo original, ainda que uma cultura disciplinar fortemente afetada por uma inclinação positivista e por forte apego ao ‘rigor metodológico’ tenha permanecido como legado perene e constitutivo da nova identidade”. A sua criação resultou de um duplo processo: por um lado, a incorporação dessa história de “curta duração” (não mais do que quatro gerações de cientistas políticos formados no país) numa perspectiva mais larga, em que a Ciência Política estadunidense, com sua forte inclinação behaviorista, foi uma referência importante; e, por outro lado, a ruptura e a demarcação crítica com representações do passado existente sobre a política, o chamado “pensamento brasileiro” (Lessa, 2011, p. 20-21). Em geral, essa tendência de demarcação crítica com nosso passado intelectual pode ser verdadeira, mas no caso do IUPERJ, parece ter sido bem mais tênue, pois, pelo menos por parte WGS2, havia o interesse explícito em investigar as tradições do pensamento político nacional.


A obra e a trajetória de WGS


Propõe-se aqui uma apresentação esquemática da obra e da trajetória de WGS, compreendidas segundo três fases, dentro do intervalo de 1962, ano de suas primeiras publicações, a 2019, ano de seu falecimento.

Uma primeira fase mais curta da obra de WGS, 1962-1964, é marcada pela sua participação, em parte, destoante no ISEB, dada as fortes críticas feitas por ele à ideologia predominante no instituto.

Graduado em Filosofia em 1958 pela Faculdade Nacional de Filosofia, da então Universidade do Brasil, o jovem WGS publica “textos de combate”, a fim de criticar as “ideologias” do período, como o nacional-desenvolvimentismo, defendido por muitos isebianos, e a ideologia autoritária, defendida por alguns setores da esquerda e da direita. No conhecido panfleto “Quem dará o golpe no Brasil?” (1962a), WGS parte da avaliação de que



2 O mesmo pode ser dito a respeito de outros membros, como José Murilo de Carvalho e Luiz Werneck Vianna.


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a classe dominante brasileira tenta persuadir o povo e a classe média da necessidade de um governo forte (leia-se, golpista). Em meio à disputa de ideias que poderia mobilizar o povo contra seus próprios interesses, cumpre ao intelectual desmascarar esses mitos.

A linguagem, por vezes, acalorada, marcada por ironias, é evidente nesses escritos e se repete em algumas outras publicações posteriores deste autor. Há, no caso, uma contenda ideológica central do autor contra um artigo do político udenista Carlos Lacerda, que, em sua opinião, era inquestionavelmente um dos ideólogos do golpe em marcha, já que buscava preparar a consciência das massas para a aceitação da ditadura. Segundo WGS, o governador da Guanabara procurava persuadir o leitor de que só um governo dotado de grande autoridade poderia resolver o impasse em que se encontrava o país, que consistiria no fato de que ou os comunistas tomariam o poder no Brasil ou os militares o fariam.

De fato, o país vivia um impasse, mas não o descrito por Lacerda. Para WGS, o dilema era que a estrutura social brasileira havia dado origem a um conjunto de reivindicações sociais que ela mesma não poderia satisfazer. O autor defende que é preciso rejeitar qualquer tipo de golpe, inclusive um de esquerda, pois este recurso é sempre a “abertura histórica para o golpe de direita”. Um golpe, comparado a um regime democrático, é condenável porque a democracia é, por definição, o governo no qual as reivindicações da maioria do povo têm, de partida, legitimidade. Ainda que WGS entenda o regime democrático da época como uma ditadura “disfarçada”, a democracia é invocada na argumentação do autor como mais um motivo para a organização do povo contra o golpe latente. Aceitar a necessidade do golpe significaria assumir que os conflitos e problemas da nação não deveriam ser solucionados mediante as lutas sociais, a competição política e o debate livre.

Embora não haja nenhuma referência explícita nesses escritos, o referencial teórico do autor em “Quem dará o golpe no Brasil?” parece ser, de fato, a tradição marxista. “Classes sociais”, “ideologia”, “condições materiais”, a premissa de que as relações humanas, inclusive o próprio golpe, são determinadas pelas condições materiais e, enfim, o assentimento com certa teleologia da história, na qual o povo, inevitavelmente, terminará como vencedor na luta contra seus opressores, aparecem de modo disperso ao longo de seus escritos. No artigo “Desenvolvimento: ideologia dominante” (1962b), além de referências a categorias como mais- valia e luta de classes, a forma como WGS (1962b, p. 171) avalia o desenrolar a longo prazo da ideologia desenvolvimentista se insere claramente em um esquema de determinação próprio de certa linhagem marxista. Pois como no nível da infraestrutura brasileira ocorreram modificações sociais e econômicas significativas, o desenvolvimentismo como suposto projeto

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de unificação da nação, teve que procurar, no plano da superestrutura, solucionar as contradições que a própria realidade engendrou, tornando-se cada vez mais uma ideologia reacionária.

No contexto de Guerra Fria, a intelectualidade brasileira possuía posições políticas bastante polarizadas e marcadas pelo socialismo real. Entretanto, não se deve descurar da heterogeneidade do próprio campo da esquerda brasileira à época. Pertencente a esses campo, WGS, se colocou contra muitas das teses defendidas pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro). Em Reforma e contra reforma (1963), WGS critica fortemente os propositores das reformas defendidas pelo partido, entendendo que elas são insuficientes para o atendimento das necessidades populares, ainda que sejam importantes para a perpetuação do capitalismo no país. O autor assevera que somente a “liquidação do latifúndio” e a “luta anti-imperialista”, e não os “métodos burgueses”, poderiam garantir a “conquista dos objetivos populares” (Santos, 1963,

p. 26). Contra teses do “partidão”, WGS argumenta que a burguesia nacional não poderia liderar a luta anti-imperialista, promovendo uma “revolução democrático-radical” (Santos, 1963, p. 41).

Uma segunda fase do seu pensamento (1965-1989) corresponde do ponto de vista institucional à transição entre o extinto ISEB e o recém-criado IUPERJ, criação que se consolida nos anos seguintes, sob o protagonismo de WGS, dentre outros intelectuais. Há significativas inflexões teóricas e metodológicas em comparação com o primeiro período, resultantes da incorporação dos métodos e teorias com os quais esse autor toma contato em seu doutorado nos Estados Unidos, cujo objeto é o autoritarismo (tema por excelência dessa fase, além da questão da redemocratização, e não mais a questão desenvolvimentista).

Os primeiros escritos deste período são sobre a imaginação política nacional, nos quais WGS (1970) avalia a literatura publicada sobre o golpe de 1964, que, àquela época, teria a tendência de representar a vida social como uma luta constante entre grupos distintos e que se dividiria entre aqueles que se posicionam favoravelmente e aqueles que se colocam contra o golpe. Os primeiros argumentam que Goulart estabeleceu aliança com os comunistas e com os corruptos, promoveu inflação, desordem administrativa e procurou romper com a ordem democrática. Logo, os militares e o povo tiveram que assumir o poder. O segundo grupo assevera que o presidente adotou uma política progressista, rompendo com interesses das elites brasileiras e com o imperialismo, o que levou esses grupos ao golpe, para interromper a “revolução brasileira em curso” (Santos, 1970, p. 140). Havia também uma terceira explicação, representada por Francisco Weffort e Celso Furtado, um pouco mais sofisticada do que as

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primeiras, que consistiria em observar que, sendo o Poder Executivo obtido mediante o apoio do povo, o presidente se vê obrigado a atender às reivindicações populares. No entanto, este atendimento é obstaculizado pelo Legislativo que é contrário às reformas planejadas pelo presidente, gerando uma crise, solucionada por uma ruptura institucional. Esses artigos de WGS são fundamentais para a própria conformação dessa área de estudos no Brasil, conforme avalia Lynch (2013, p. 42), para quem “a pesquisa de WGS foi o primeiro grande marco dos estudos do pensamento político brasileiro no âmbito das ciências sociais”. De acordo com Lynch (2013,

p. 42), WGS produziu um “enquadramento disciplinar do objeto”, concebendo-o diferentemente da história das ideias (filosóficas, por exemplo), ou da cultura brasileira, mas relacionando-o diretamente às disputas políticas que redundam em determinadas práticas.

No livro Ordem burguesa e liberalismo político (1978), por exemplo, WGS analisa as tradições intelectuais brasileiras, procurando compreendê-las à luz da instauração de uma ordem liberal, um dos principais temas do conjunto de sua obra. Nesse escrito, WGS debruça- se sobre os grandes embates intelectuais e políticos do Império à Primeira República (recuperando autores completamente esquecidos pelos analistas de seu tempo). Ele descobre que o que diferenciava os intelectuais e políticos conservadores dos liberais não eram propriamente questões de princípio, mas sim de estratégia. Tanto liberais quanto autoritários concordavam que era necessário criar uma sociedade liberal no Brasil. A divergência decorria dos meios para a consecução dessa finalidade: enquanto os liberais defendiam a implementação imediata das medidas liberais clássicas (descentralização, extensão do sufrágio, fortalecimento do Legislativo, etc.), tais como as adotadas pelos países da Europa Ocidental e da América do Norte, os autoritários asseguravam que era necessário adotar meios não liberais para a realização desse fim.

Sob a ótica conservadora, a adoção desse método heterodoxo justificava-se pela morfologia da sociedade brasileira – marcada ainda pelo poder privado dos latifundiários e formada por uma cultura autoritária e clânica. Cientes de que a eficácia das instituições políticas depende da ordem social, os pensadores autoritários afirmavam que somente com a centralização do poder político seria possível transformar, pela ação do governo federal, a sociedade nacional. Recuperando as hipóteses formuladas por esses autoritários, WGS repõe, portanto, o paradoxo do liberalismo brasileiro: para se instituir uma sociedade a que se possa chamar de minimamente liberal, é necessário adotar meios não liberais. Essa ideia-força dos autoritários instrumentais foi recuperada e transformada, ainda que parcialmente, em agenda


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governamental por Vargas, que produziu uma modernização conservadora do Brasil, criando, através do protagonismo estatal, uma ordem liberal e moderna.

Em obra posterior, Sessenta e quatro: anatomia da crise (1986), evidencia-se mais claramente os aspectos típicos da nova Ciência Política. WGS (1986) afirma que o golpe de 1964 não recebeu um estudo adequado dos estudiosos. Isso teria ocorrido precisamente porque os intelectuais que procuraram entender esse evento baseavam-se no que ele denomina de “paradigma clássico de análise social e política brasileira”, de acordo com o qual os processos políticos são interpretados como dependentes de grandes tendências econômicas e sociais. Para ele, o golpe de 1964 só poderia ser devidamente compreendido se fossem introduzidas variáveis propriamente políticas. São elas que constituem o roteiro do supracitado livro: fragmentação e radicalização partidária, rotatividade e instabilidade intra-elites. O livro busca demonstrar, portanto, como as instituições políticas afetam as variáveis econômicas e sociais, na medida em que definem a forma pela qual a competição econômica se traduz em alternativas políticas e, também, na medida em que causam um impacto no desenvolvimento posterior da estrutura social. Nessa obra, WGS formula um modelo formal-dedutivo de cálculo do conflito político, podendo ele ser replicado a outras situações históricas semelhantes. Segundo esse modelo, a situação que antecedeu ao golpe de 1964 é caracterizada pela dispersão de recursos políticos entre atores fragmentados e radicalizados, um sistema partidário pluralista e polarizado, no qual nem o governo consegue formar uma maioria (a despeito de sua estratégia contraproducente de aumentar a rotatividade entre as elites nos cargos da burocracia estatal), nem a oposição consegue mais do que formar coalizões ad hoc, com o objetivo de vetar as políticas propostas pelo Executivo, gerando, conseguintemente, uma “crise de paralisia decisória”, tomada como condição suficiente para a ruptura das regras do jogo.

Uma terceira fase, abrangendo o período de 1990 a 2019, caracteriza-se pela centralidade da temática relacionada à formação da democracia brasileira e de suas instituições. Esse foco se articula com questões já abordadas na fase anterior, como a construção da ordem liberal, e também com novos debates, tais como as propostas de reforma política, em um contexto marcado por certo desencanto da opinião pública com a Nova República. Comparativamente à etapa precedente, as inflexões observadas são menos acentuadas do que aquelas verificadas no contraste entre os escritos da primeira e da segunda fase. Metodologicamente, não há alterações significativas. No plano temático, a ênfase nas questões do autoritarismo e da redemocratização é substituída pela análise da dinâmica das democracias existentes. Nesse período, WGS busca destacar as conquistas da jovem democracia brasileira

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em face de seus críticos e denunciar as tentativas de oligarquização do sistema político, frequentemente disfarçadas como propostas de reforma política, tais como a adoção do parlamentarismo, da cláusula de barreira e do voto majoritário. Além disso, examina as novas formas de golpe que alinham o Brasil às tendências autoritárias do século XXI, como o episódio que resultou na destituição de Dilma Rousseff em 2016.

No livro Razões de desordem (1993), WGS apresenta uma tese sobre a formação da política brasileira que integra diversas análises presentes em outros escritos. Em comparação com a experiência inglesa, ele mostra como se formou a ordem brasileira, enfatizando três questões comuns às sociedades modernas: a ampliação da participação popular, a institucionalização da competição política e também a solução para os problemas distributivos. Sendo uma colônia, o mesmo processo de acumulação de riquezas via expansão mundial do comércio, que favoreceu a integração inglesa, gerou segmentação e desigualdade entre as regiões brasileiras. Como muitos outros países latino-americanos, aqui vivia-se “extemporaneamente” o problema liberal básico: o caráter fragmentado e amorfo do país impedia a formação de uma ordem nacional burguesa. WGS retoma os escritos de Oliveira Vianna, subscrevendo, em linhas gerais, seu diagnóstico sobre a sociabilidade típica do país.

Em nossa história, o pacto oligárquico, ainda que instável, manteve sob seu comando o Estado brasileiro, fragilizado e impotente diante dos “leviatãs estaduais”. O verdadeiro marco de transformação foi a Revolução de 1930. A partir desse evento, o Estado brasileiro, ainda que operando sob condições de baixa institucionalização e restrita participação política, passou a garantir direitos sociais. Esses direitos foram instrumentalizados como mecanismos para promover a inclusão à cidadania, embora de maneira tutelada.

Durante o período do Império e da Primeira República, o sistema político brasileiro apresentava características claramente oligárquicas. Em um contexto de mercado nacional fragmentado e desigual, além do agravamento dos conflitos inerentes à ordem capitalista, o sistema revelava uma dinâmica disruptiva e frequentemente inclinada à desordem. Essa estrutura política se sustentava por meio da restrição à participação política e do uso contínuo da violência como estratégias para conter grupos insatisfeitos com o status quo.

A partir da contraposição entre a evolução institucional da Inglaterra e do Brasil, WGS conclui que seria possível pensar em outras possibilidades do processo de democratização, se o problema distributivo fosse levado em consideração. O caso brasileiro constitui um exemplo notável, mas não isolado, de como a legislação social foi utilizada em momentos de crise e de


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baixa liberalização e participação política, como ocorrido durante o Estado Novo e a ditadura militar de 1964.

Esse cenário manteve-se basicamente inalterado até os anos 1970, quando a sociedade brasileira passou por um intenso processo de modernização e diversificação social. Tendo isso em vista, ele indaga se o Brasil no fim do século XX é ou não uma democracia. A primeira marca dos regimes democráticos, diz ele, é a acumulação material. O Brasil não apenas cumpriu, no intervalo entre 1965 e 1980, o requisito da acumulação, com uma média de crescimento do PIB de 8,8% (Santos, 1993, p. 81), como a sua estrutura econômica tornou-se bastante diversificada. Verificou-se, concomitantemente, intensa urbanização e crescimento das associações civis, quebrando o monopólio organizacional corporativista estabelecido nos anos 1930. Outra característica é a expansão do eleitorado. O Brasil teve uma média de crescimento de 31,2% entre 1945 e 1986, o que se deu concomitantemente ao aumento da competitividade. O último traço típico das poliarquias, a correlação entre participação e renda e educação,

aplica-se também à sociedade brasileira. A despeito de ter cumprido, em resumo, todos os pré- requisitos de uma poliarquia, WGS argumenta que não vivemos em um regime plenamente democrático. A despeito do significativo incremento do eleitorado nacional e da competição política, não se formou no país uma cidadania poliárquica. Ao contrário do esperado, os indivíduos no Brasil, atomizados e imersos em conflitos e carências de diversas ordens, raramente recorrem às instituições políticas para demandar a resolução de suas necessidades. Como uma espécie de “estratégia de sobrevivência”, a população, desprovida de suporte estatal efetivo, tende a negar a dinâmica social predatória. A fragilidade das normas de convivência coletiva gera uma desconfiança generalizada, promovendo a prevalência de códigos privados de comportamento em detrimento das normas públicas.

Essa condição culmina em uma cultura de natureza predatória, caracterizada por interações sociais que, no melhor dos cenários, resultam em um padrão de soma zero e, em situações adversas, em uma soma negativa. Contrariando a visão de alguns especialistas que atribuem o mau funcionamento da democracia a deficiências nas instituições políticas, e, por isso, defendem reformas no sistema político, WGS argumenta que o problema reside, fundamentalmente, na ausência de direitos constitucionais básicos.

Nos últimos anos, WGS se posicionou publicamente diversas vezes em defesa da jovem democracia brasileira e contra-ataques feitos contra ela. Em À margem do abismo (2015), ele compreende que se esboçava no país uma reação conservadora, protagonizada pelo Judiciário e pela mídia empresarial, frente ao avanço da democracia competitiva, reação que envolvia uma

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crítica exagerada ao poder Legislativo, tido como lento, omisso e corrupto. O livro debruça-se sobretudo em torno do julgamento conhecido como “mensalão”. A excepcionalidade desse julgamento é patente, argumenta WGS, tanto no que diz respeito à questão da culpabilidade, quanto em relação à dosimetria das penas adotadas pelos magistrados. Para além da questão das contradições e procedimentos extraordinários adotados pelo STF, o julgamento revelou igualmente desconhecimento dos juízes a respeito do funcionamento real da política em uma democracia de massas e o seu profundo “desprezo a priori pela atividade política e particularmente pelo PT como partido político” (Santos, 2015, p. 148), desprezo esse compartilhado com amplos setores da imprensa. À margem do abismo termina com ponderações do autor sobre o contexto posterior à reeleição de Dilma Rousseff. Em meio às crescentes manifestações contra corrupção e contra o PT, o cientista político identificava o surgimento de uma crise institucional grave, a incapacidade das lideranças partidárias de encaminhar alguma solução para ela e a utilização casuística do impeachment como meio de pressão aos governantes.

Em A democracia impedida (2017), WGS avalia o processo de deposição de Dilma, denominado por ele de um golpe parlamentar, que mantém a rotina institucional inalterada, mas modificam o sentido das políticas adotadas pelo poder governante. Esses golpes não geram, todavia, um sistema de garantias mútuas, elemento que contribuiria para a estabilização do regime. Embora existam várias semelhanças entre o contexto do golpe de 1964 e o de 2016 (a moralização da política em torno de escândalos de corrupção, uma campanha midiática contra os governantes do Executivo federal, a reação elitista contra a melhoria das condições de vida de setores subalternos, promovida por governos trabalhistas etc.), a ecologia política de 1964 era subdesenvolvida quando comparada à de 2016.

Precisamente por isso, a natureza do golpe contra Dilma não poderia ser a mesma do que depôs Jango. Por decorrência lógica, as estratégias de luta pela recomposição do pacto político democrático têm também de ser diferentes. Pensando nos conflitos distributivos de uma ordem competitiva, enquanto as democracias são compatíveis com as mudanças aceleradas típicas de sociedades industriais, as oligarquias só podem funcionar normalmente em situações de conservadorismo social. Ponderando sobre as teorias da modernização, WGS sugere, na medida em que o conflito político ampliado é tornado legítimo pela democracia, ser razoável supor que essa sociedade se torna mais suscetível a crises.

Seria o golpe de 2016, então, o resultado paradoxal do processo de “expansão cívica”? Para WGS, não porque não funcione bem, mas precisamente porque a democracia não pode

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atender a todas as demandas consentidas por ela, é que o golpe se “constitui um dos desenlaces possíveis de processos críticos derivados da ecologia política das sociedades capitalistas” (Santos, 2017, p. 128). O golpe parlamentar, “filho bastardo” da democracia no século XXI, colocou o Brasil na onda reacionária do capitalismo neoliberal, ainda que com o atraso de quase uma década, através da revogação de direitos e do desmonte do Estado de bem-estar (aqui, já bastante limitado e incipiente).


Considerações finais


As três fases do pensamento de WGS apresentam inflexões notáveis, mas também são marcadas por continuidades importantes. Destaca-se a intenção de construir uma análise ampla da realidade política, com especial atenção ao contexto brasileiro, e a disposição de dialogar com públicos diversos, contribuindo para o debate político nacional como intelectual e especialista. Sua trajetória, do início até as fases subsequentes, reflete a emergência da nova Ciência Política no Brasil, ainda que não signifique uma ruptura completa com a tradição anterior. WGS, como outros de sua geração, pode ser visto como um intelectual de transição, que conecta os grandes “intérpretes do Brasil” ao modelo de pensador especializado predominante no fim do século XX e início do XXI. Este último é caracterizado por um foco em fenômenos circunscritos a áreas de hiperespecialização, mantendo, contudo, a capacidade de responder às demandas da sociedade por meio de uma produção técnico-científica de excelência.

Mantendo-se, por assim dizer, como um “isebiano dentro do IUPERJ”, o pensamento de WGS tem, como núcleo central (a partir da segunda fase de sua trajetória), uma narrativa de longo prazo sobre a formação da sociedade brasileira. Essa narrativa evidencia como a ausência de pressupostos fundamentais da ordem burguesa impede a plena realização da democracia no país. Apesar de abordar variados temas associados às subáreas da nova Ciência Política brasileira, sua obra não é fragmentada. Ao contrário, destaca-se pela preocupação em dialogar diretamente com a opinião pública, tanto pela escolha dos objetos de estudo, como os golpes de 1964 e 2016, quanto pela forma provocativa e polêmica de sua escrita.


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REFERÊNCIAS


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